(Po)ética da saudade: cruzes localizam luto, manifestações culturais e política nas estradas

Manifestação cultural, protesto e monumento. As cruzes em referência às vítimas de sinistros nas estradas podem ser interpretadas de diversas formas por aqueles que as constroem e as dispõem no espaço público ou pelos viajantes e transeuntes que por elas passam. Ora permeadas por suntuosos memoriais, flores e belas pinturas, ora escondidas pelo mato e em frangalhos pela ação do tempo, esses símbolos podem encantar ou representar um sinal de alerta sobre os perigos de determinada rodovia. Traço da colonização cristã do país, as cruzes também constroem memórias e dizem do modo como o brasileiro foi ensinado a se relacionar com o luto e com a morte, enquanto fenômeno atravessado, contido e regulado pelo Estado e por por marcadores sociais, como gênero, classe e geração.

Doutora em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Vanessa Eletherio estuda as cruzes na estrada desde o mestrado, em que investigou como esses objetos simbólicos produzem e (in)visibilizam a morte no Sertão do estado. “Levantar as cruzes na estrada, além de ser um ato social e cultural, conectado à religiosidade e ao enfrentamento do luto, também tem a ver com uma manifestação política. Colocá-las no local em que aconteceu o acidente, muitas vezes em um local marcado pela pobreza e pela ausência de políticas públicas, também é uma forma de protesto, de mostrar que aquela estrada é perigosa e precisa de atenção”, afirma Eletherio.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

A pesquisadora chama atenção para o fato de que as cruzes visibilizam os mortos que representam. “As maiores representam adultas, enquanto as pequenas indicam que a pessoa que morreu foi uma criança. Já a quantidade de cruzes indica a quantidade de mortos”, comenta.

Para Eletherio, a visibilidade das cruzes na estrada, por vezes, também está associada a questões de classe. “Em Santa Cruz da Baixa Verde, no Sertão do estado, percebi que havia uma cruz de mármore na entrada da cidade, que faz referência a um adulto e a uma criança que morreram ali e são parentes de um político local. É claro que a qualidade desse material, que custa caro, permitirá que ele fique visível por muito tempo do que cruzes instaladas por pessoas mais pobres, com pedaços de metal e cimento, que tendem a enferrujar e perder a cor com o tempo”, acrescenta.

Atualmente, a pesquisadora vive em Portugal, onde fundou e coordena o Instituto Português de Terapia do Esquema. Ela conta que também é comum encontrar cruzes nas estradas no país, especialmente na zona rural. “O que vemos no Sertão do Brasil é uma construção social que remonta aos portugueses. Inclusive na nossa forma de experienciar a falta, a saudade. No contexto do sul brasileiro, por exemplo, onde há maior colonização por parte de alemães e italianos, há outra forma de se relacionar com a saudade”, comenta Eletherio.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora desenvolve uma reflexão sobre como a maneira como se fala das saudades está associada ao que ela conceitua como uma “ética saudosista”, uma forma de perceber o mundo carregada de saudade. “É um olhar para o passado como algo melhor do que o presente. Isso a gente também bebe de Portugal. No trabalho, investigo de onde vem a palavra saudade, uma noção muito presente na história dos portugueses, que começa nas cartas e no contexto das grandes navegações. No sertão, essa ética tem essa origem portuguesa”, frisa. Segundo Eletherio, as cruzes na estrada manifestam esta ética saudosista. “São uma forma de bem lembrar aquela pessoa que faleceu. Quando se tem uma perda trágica, esse saudosismo fica ainda mais forte, a ponto de algumas pessoas nem conseguirem falar sobre isso”, completa.

Identidade coletiva

Doutor em geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor do Instituto Federal do Ceará campus Quixadá, Emílio Pontes situa as cruzes na estrada como geossímbolos, isto é, elementos paisagísticos que unem um grupos de pessoas, contribuindo para o fortalecimento de suas identidades. Desta forma, eles também são uma forma de apropriação do espaço, construída pela implementação de marcas culturais, religiosas ou políticas desses grupos em uma determinada paisagem, significando-a. “A cruz não é simplesmente um ajuntamento de duas madeiras colocadas em um local em vão. Elas trazem uma série de identidades para as pessoas que a entendem como um sinal de pertencimento religioso. Na geografia, geossímbolos são essas múltiplas formas que determinados povos tomam para si, enquanto para outros podem não significar nada”, acrescenta.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

Pontes afirma que as cruzes remetem ao processo histórico de enterramento dos mortos. “A partir do momento em que os cemitérios saíram do âmbito eclesial - os campos santos - e passaram a ser os cemitérios que conhecemos hoje, com grandes capelas e lápides de mármore extremamente caras, mas valas comuns e urnas para quem não tem poder aquisitivo. Quem está nessas últimas? Geralmente pessoas que andam a pé ou de bicicleta em estradas do meio do Sertão, práticas de pessoas com outra vivência econômica e social no país”, frisa.

Desta forma, as condições de vida das vítimas de sinistros em rodovias também são marcadores de identidade produzidos pelas cruzes. “Pensando no sertanejo, no excluído social, aquela é uma forma de marcar uma identidade que só é entendida por quem sabe que aquilo aconteceu. Na Chapada do Apodi, há um caso de assassinato de um militante Sem Terra, Zé Maria, morto à beira da estrada. Hoje, tem uma pequena cruz no local da morte. Uma memória viva, um marco social extremamente relevante da identidade do Movimento Sem Terra, das centenas de pessoas que são assassinadas pela questão fundiária no Brasil”, coloca Pontes.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

Em carros, ônibus, motocicletas, carroças ou a pé, quem passa pelas cruzes pode ser afetado por elas das mais diferentes maneiras. “A gente tem uma dificuldade inata de entender o fim. As cruzes na estrada- assim como cemitérios, outras formas simbólicas- podem passar despercebidas ou provocar algo que pode ser espanto, negação, tristeza e reflexão, inclusive sobre a forma como estamos cuidando de nossas vidas do ponto de vista de modal rodoviário”, conclui o pesquisador.

Tabu da morte

Para Ângela Maria Souza, professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do Projeto Integrado de Pesquisa e Extensão em Perda, Luto e Separação (Plus), as sensações de medo e tristeza que as cruzes podem provocar nos viajantes e transeuntes de rodovias está associada à concepção da morte como um tabu na sociedade brasileira. “Nos hospitais, até hoje, se fala a palavra ‘óbito’, não se fala ‘morte’, ela é negada com prontidão. Nas aulas que ministro, a primeira coisa que ensino é que a pessoa tem que falar a palavra morte. A comunicação de más notícias ainda é um desafio para profissionais de saúde, pois somos treinados para salvar, não podemos sofrer pelo paciente”, reflete Souza, que ministra a disciplina de tanatologia, voltada para o estudo científico da morte.

A professora conta que seu interesse no tema começou em 1998, com o falecimento de seu filho. Desde então, ela coordena um grupo terapêutico de apoio ao luto, voltado para o acolhimento de pessoas que estão vivenciando processos de perda. “A morte por acidente é complexa de lidar porque é uma morte repentina. Demora um pouco a ser tratada porque a pessoa não teve condição de despedida, como no caso de uma morte por doença. O maior arrependimento dos familiares costuma ser o de não ter se despedido daquela pessoa adequadamente”, comenta. Assim, uma das técnicas de acolhimento é o desenvolvimento de rituais que facilitem a elaboração do luto. “Ajudamos a família a fazer esse ‘ritual’ de despedida, seja através de visualização criativa, em que a pessoa visualiza o ente querido, seja por meio de um ritual de consagração, trabalhando com itens como álbuns de fotos e cartas, para que a pessoa faça o ritual que não aconteceu por causa da morte repentina”, explica Souza.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

De acordo com a professora, para os familiares das vítimas de sinistros rodoviários, o luto começa no instante em que elas recebem a comunicação de más notícias. “O ritual do grupo começa trabalhando essa notícia, com a pessoa contando como recebeu essa informação, se foi ao cemitério, se teve um momento em família. Gosto de dizer que os mortos têm direito à morte, independentemente de qual seja. Temos que deixar o outro ir”, completa.

Fases do luto

Psicóloga clínica com especialização em psicoterapia do luto e coordenadora da Comissão de Envelhecimento do Conselho Regional de Psicologia (CRP-PE) de Pernambuco, Zuila Rios frisa que o luto é uma elaboração da perda único para cada indivíduo, embora seja possível identificar cinco fases no processo. “A negação, um mecanismo de defesa do inconsciente, a sensação de que aquilo não está acontecendo de verdade; a raiva, o sentimento de que o que aconteceu não foi justo; a barganha, uma negociação com Deus ou o Universo para vir o consolo; a depressão; e, por fim, a aceitação”, explica. A psicóloga enfatiza que é a partir dessas fases que a terapia se desenvolve. “A primeira tarefa do luto é a de aceitar a realidade. A segunda, é processar a dor e, em seguida, temos que fazer o ajuste do sobrevivente [pessoa que perdeu um ente querido] ao mundo sem aquela pessoa morta, que poderia ser, por exemplo, o provedor da família”, afirma.

Foto por Júlio Gomes/LeiaJá Foto por Júlio Gomes/LeiaJá

Por fim, pode haver ainda um ajuste espiritual, que acontece de acordo com a fé professada pelo sobrevivente. Para Rios, é aí que as cruzes na estrada, no caso de pessoas que perderam entes queridos em sinistros rodoviários, cumprem seu papel no processo de luto. “Na terapia do luto, a gente chamaria essas cruzes de laços continuados, uma forma que a pessoa encontra de manter uma conexão duradoura com a pessoa morta, encontrando um lugar apropriado para ela em sua vida emocional. O laço continuado pode ser funcional, quando olho para aquela imagem e me sinto bem, porque processei o luto, ou disfuncional, quando a pessoa nem consegue olhar para aquela cruz”, destaca.

De acordo com Rios, além das cruzes, os laços continuados podem ser quaisquer elementos que lembrem o morto, como uma comida ou um objeto. “Tem pessoas que deixam de comer algo que lembra uma avó que já faleceu, enquanto outras gostam de fazer aquela refeição por se conectarem com boas lembranças, por terem processado o luto. O trabalho do luto é um trabalho bonito, sobre o que aquela pessoa deixou de bom. Embora fique a perda, a lembrança daquela pessoa não vai despertar dor, mas saudades”, conclui.