Insegurança viária e ausência de dados sobre mortes nas estradas pernambucanas
Percorrer a PE-090 enquanto se registra a quantidade de cruzes à beira da estrada é sentir ser dominado aos poucos pelo medo de virar mais uma vítima de um sinistro de trânsito. É concluir que há algo muito errado com aquela rodovia. O trajeto que liga Carpina, na Mata Norte, a Toritama, no Agreste, tem 109,7 km de extensão, segundo dados do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-PE). Durante o percurso, foram identificadas 158 cruzes e estruturas semelhantes erguidas em homenagem a mortos em sinistros de trânsito - com significativa possibilidade de subnotificação, dada a dificuldade de se fazer uma contagem minuciosa nesses locais. A proporção sugere que é impossível andar um quilômetro da estrada sem se deparar com um desses memoriais - uma cruz a cada 694 metros.
A PE-177, também visitada, não traz um cenário muito melhor. Ao longo dos seus 56,30 km foram identificadas 37 cruzes e capelas, ou seja, uma cruz a cada 1,5 km rodado.
Tanto a PE-090 quanto a PE-177 foram selecionadas pela reportagem por constarem como piores trechos rodoviários pernambucanos no Guia CNT de Segurança nas Rodovias Brasileiras de 2024, com base em levantamento do próprio CNT de 2023. A PE-090 é classificada como ruim, enquanto a PE-177 consta como péssima.
Para a professora da Universidade de Pernambuco (UPE) Márcia Macedo, doutora em engenharia civil e infraestrutura urbana, a qualidade geral das estradas pernambucanas não é boa. Muitas dessas vias são marcadas por sinalização insuficiente, curvas sinuosas, asfaltamento ruim, ausência de acostamento e até de faixa central.
Segundo a professora, as PEs são pistas simples em sua maioria, ou seja, um seguimento de estrada compartilhado por veículos que transitam em sentidos opostos. Ela explica como a configuração atual contribui para a insegurança: "Quando você tem uma estrada que liga um município a outro, você precisa de velocidades um pouco mais altas para diminuir o tempo de trajeto. Normalmente, uma PE ou uma BR deveria ter menos acessos, para que tivessem uma maior velocidade. Mas aí o que acontece nas nossas? A gente tem PEs com número de acesso muito grande.”
Ela continua: “Com isso, você tem muitas ultrapassagens indevidas, que são uma das maiores causas de acidente com gravidade.” Segundo ela, muitas curvas são em local de declive, “então aumenta muito a velocidade.”
O professor de engenharia civil Maurício Pina, membro titular da Academia Nacional de Engenharia, argumenta que há condições geométricas suficientes para que as estradas estaduais sejam mais seguras. "Não tem sentido você ter uma rodovia que não seja bem segura. Usa-se a expressão 'curva perigosa'. Na verdade, nenhuma curva devia ser perigosa. Toda curva devia oferecer condições adequadas para a circulação", ele defende.
Outro aspecto observado pela reportagem durante a busca pelas cruzes foi a ausência de acostamento em alguns trechos. Maurício Pina também dá importância a essa característica. “O acostamento é um item fundamental para segurança na rodovia. Se a rodovia não tem acostamento e o veículo sofre uma pane, ele vai ficar sujeito a um acidente. Todas as rodovias deveriam ser providas de acostamento”, reforça.
Educação e ostensividade
Assim como as cruzes vão compondo o cenário das estradas percorridas, o mesmo se dá com motociclistas e seus passageiros sem capacete. As pessoas entrevistadas ao longo do trajeto contam que é cultural que não se use o equipamento de segurança no interior do estado - apesar de muitas vítimas desses sinistros de trânsito serem motociclistas sem a devida proteção.
Outros comportamentos relacionados aos sinistros são dirigir alcoolizado, não usar cinto de segurança e excesso de velocidade. A professora Márcia Macedo diz que é importante medidas educativas que combatam esses fatores de risco, mas defende maior ostensividade no combate a tais irregularidades de trânsito.
"Quando você tenta educar, diz que a pessoa pode perder sua vida, é como se ela acreditasse que não vai acontecer com ela. Quando você tem uma fiscalização mais assertiva e punitiva, quando dói no bolso, a pessoa sente um pouco mais”, ela diz. “No interior, você não tem uma fiscalização de trânsito tão assertiva quanto na capital, e aí a coisa fica mais frouxa. A menos que ocorra uma fiscalização mais ostensiva, no sentido de punir com multa, apreensão da motocicleta e medidas mais drásticas, a coisa não vai mudar”, argumenta Macedo.
O Comitê Regional de Prevenção de Acidentes de Moto de Pernambuco (CRPAM) é uma frente de trabalho para combater os altos índices de sinistros com esse tipo de transporte, sendo responsável por traçar estratégias a partir da análise da incidência de casos. De acordo com Tereza Neuma, coordenadora do CRPAM da V Gerência Regional de Saúde (Geres), que abarca o Agreste, o comitê vai cobrar a criação de um núcleo da Operação Lei Seca na região.
“A gente sabe que iria dar resultado, que iria ter uma redução desses acidente. A gente vem desenvolvendo ações educativas com parcerias, mas eu acho que a gente precisaria de alguma atividade mais contundente mesmo, como a Lei Seca faz na região da capital de Pernambuco”, opina.
Apesar dessa preocupação, Neuma vê a situação de conservação das rodovias como a mais alarmante. “Os parceiros do comitê falam com muita propriedade que as estradas da nossa região precisam, sem dúvida nenhuma, de reformas com certa urgência.”
Para o professor Maurício Pina, o esforço precisa ser intensificado, pois o cenário de mortes no trânsito é estarrecedor. "Há estatísticas que mostram que, por dia no Brasil, mais de 50 pessoas vêm a falecer por conta de acidentes na rodovia. As pessoas não dão a devida atenção a isso", lamenta. "Em dois, três dias morre mais gente nas estradas do que na queda de um avião. Nós não podemos estar com essa quantidade de pessoas morrendo ou sofrendo sequelas graves", acrescenta.
"O Estado tem trabalhado na redução de acidentes, mas talvez isso merecesse ser mais intensificado. Esse esforço tem que ser muito grande, em todos os locais, para ver se realmente a gente consegue atingir um padrão de país mais desenvolvido", ele completa.
Os números de quem morre
Enquanto essas cruzes não trazem rigor estatístico, elas falam como as estradas podem ser mortais. E se as cruzes não são estatísticas suficientes para o planejamento de políticas de segurança viária, não há muitos outros caminhos aos quais recorrer.
Pernambuco não tem um protocolo unificado de registro desse tipo de ocorrência. Assim, não se tem clareza sobre quantos estão morrendo e os pontos específicos.
O Departamento de Estradas e Rodagem (DER-PE) informou que não tem um levantamento de mortos nas estradas. A Secretaria de Defesa Social (SDS) declarou que os dados que possui não faz distinção entre vítimas de estradas federais, estaduais e municipais, ou seja, pouco útil em termos de desenvolvimento de políticas de segurança no trânsito.
A professora Márcia Macedo destaca há dificuldades em se obter números precisos sobre as ocorrências de trânsito nacionalmente. “Você tem Denatran [atual Senatran], DataSUS, o DPVAT e não tem uma padronização entre esses órgãos. Para você ter uma ideia, o Denatran contabiliza apenas as mortes in loco, então, se morreu no trajeto para o hospital, esse dado já não é contado. O DataSUS contabiliza morte das pessoas que chegaram no estabelecimento de saúde. E o DPVAT só considera as vítimas quando elas dão entrada em seguros. Então veja que são metodologias completamente diferentes”, explica. Segundo a professora, os números chegam a ter uma diferença de 300% entre as instituições.
“A gente precisa de um banco de dados que seja extenso e confiável, coisa que a gente não tem pela ausência do preenchimento dos dados e pelas inúmeras instituições que preenchem os dados de forma diferente”, acrescenta. O Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), criado em 2018, previa a padronização das metodologias estatísticas, mas isso ainda não foi implementado.
O mais próximo que o Governo de Pernambuco tem de um acompanhamento estatístico são os dados do Sistema de Informação Sobre Acidentes de Transporte Terrestre (Sinatt). Ele é construído a partir dos registros de pacientes em 17 hospitais no estado. Ou seja, a vítima precisa ter sido atendida em um desses estabelecimentos para que o caso seja computado - uma pessoa que morreu no local do sinistro, portanto, não figuraria nesses dados.
Conforme os dados do Sinatt, as notificações de vítimas de sinistros de transporte terrestre tem aumentado ano após ano desde 2020. São 34.381 notificações em 2020; 34.976, em 2021; 38.311, em 2022; e 39.738 em 2023. Os dados mais atualizados em 2024 vão de janeiro a agosto, com 29.510 notificações - a curva sugere que este ano terá mais ocorrências do que em 2023.
Os dados deste ano identificaram que em 56,2% dos casos, a vítima não usava cinto de segurança. Além disso, 32,2% não usavam capacete no momento do sinistro; 27,4% conduzia em excesso de velocidade; e 16,2% havia consumido bebida alcoólica. Em 76,2% dos casos, ou seja, a grande maioria, a vítima utilizava moto como meio de locomoção. Nenhum caso evoluiu para óbito nas 72 horas seguintes ao atendimento.
A coordenadora da Vigilância de Acidentes e Violência da Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), Mariana Barros, que trabalha com o Sinatt, diz que todas as informações são repassadas para os órgãos competentes. "Já teve um tempo que a gente até tinha mais esse contato com a equipe do Detran e estava sempre passando esses dados. Mas com a equipe da Lei Seca, que fica dentro da secretaria, a gente tem um contato muito direto."
Ela explica que está havendo discussões para criação do Comitê de Vigilância do Óbito por Acidentes de Transportes Terrestres, o que poderia ser um poderoso instrumento para transformar o cenário atual. "A gente vai estudar aqueles sinistros de trânsito que foram fatais para ver quais foram os fatores contributivos, ou seja, o que contribuiu ali. Era uma má qualidade da estrada? Uma má qualidade de iluminação? A pessoa foi imprudente? E aí a gente vai discutir com vários órgãos competentes para ver os fatores de evitabilidade e passa recomendações."
Por fim, a coordenadora afirma que não cabe a ela acompanhar se seus dados estão sendo aproveitados pelo governo, mas destaca que eles são bem divulgados. "Acho que a gente consegue atingir o público-alvo, os órgãos de trânsito, e todos têm acesso aos nossos dados. Fica a critério deles se vão fazer algo. Mas eu realmente não fico olhando se foi feito e ninguém me dá um feedback do tipo 'eu fiz isso porque os teus dados disseram tal coisa.'"
Grito de clemência
A coordenadora do CRPAM da V Gerência Regional de Saúde (Geres), Tereza Neuma, deixa evidente a preocupação com os dados que possui. "Quando a gente vai para as estatísticas, a gente fica meio apavorado, porque todos os dias temos problemas muito sérios com relação a acidentes por motocicleta”, comenta, angustiada.
Ela confessa que as ações do comitê estão lentas por constantes mudanças nas equipes. "A gente está em um momento de transição. Tem parceiros que não compõem mais o comitê porque ele saiu daquele cargo e está sendo indicada uma nova pessoa. A gente está montando uma reunião para atualizar esses nomes."
"O comitê é uma instituição, digamos assim, pública, e sofre alterações decorrentes de mudança de governo. O Detran sofreu alteração de gestão por duas vezes, eu creio, e recentemente ocorreu uma e aí muda tudo, muda equipe de educação de trânsito, muda equipe de blitz", ela explica.
Neuma destaca que o governo está diante de um grande desafio, principalmente com relação a sinistros com motos, e precisa responder à altura. "A gente precisa de ações mais efetivas, de todas as instituições juntas. É uma política muito arrojada de prevenção de acidentes por moto, envolve muitos setores."
E ela lamenta: "Precisa realmente de todo mundo junto com essa perspectiva de buscar a redução. A gente tem perdido muita gente aqui na região por acidentes de transporte terrestre. A gente precisa urgentemente ter um olhar mais carinhoso, eu diria assim, para trabalhar com mais intensidade essa questão."
Segundo ela, as discussões internas são calorosas e, muitas vezes, ela termina triste, mas se reanima porque "um apoia o outro". "A gente fica meio angustiado porque são muitas perdas. Você vê pessoas muito jovens indo embora, famílias desamparadas, filhos órfãos, mães sofrendo muito, e a sociedade perdendo pessoas importantes por conta de um problema que é evitável. A gente pode evitar, mas precisa de ações imediatas de intervenção", desabafa.
A coordenadora do CRPAM ainda menciona que não se sente devidamente ouvida pelo governo estadual. "Eu tenho esperança de que, em breve, a gente vai ser visto com mais carinho. Mas é preciso que situações e momentos como esse aconteçam. E não só aqui, como também nas demais regionais do estado. Porque, a partir daí, o grito de clemência para a gestão vai acabar sendo ouvido." Para ela, o esforço não está sendo dado por existir "limites" e é necessário ter paciência.
"A gente entende que essas cruzes ao longo das estradas têm uma importância porque chamam atenção dos condutores de que ali é um ponto crítico, as pessoas morreram ali”, ela completa. “De certa forma, essa prática das cruzes deixa um legado muito importante e um recado para população. Não é só uma sensibilidade religiosa familiar, mas também de ajuda à população para ter uma atenção maior.”
Em 23 de outubro, a governadora Raquel Lyra (PSDB) anunciou o que chamou de "maior programa de infraestrutura viária da história de Pernambuco". Com R$ 5,1 bilhões, o programa PE na Estrada prevê ações de implantação, restauração e conservação em estradas de todas as regiões do estado, em uma extensão de mais de 3,5 mil quilômetros. Segundo o governo, de janeiro de 2023 até outubro deste ano, foram investidos aproximadamente R$ 3,6 bilhões na recuperação de estradas pernambucanas.